Resumo
A teoria dos mundos pequenos, inicialmente formulada por Stanley Milgram (1967) e formalizada por Watts e Strogatz (1998), abriu caminho a uma nova compreensão sociológica das redes humanas. A estrutura relacional das sociedades contemporâneas revela uma tensão entre cooperação e traição: em grupos pequenos, o contacto direto e a confiança favorecem a acumulação de capital social e o acesso ao poder; nas redes digitais, a conectividade aleatória amplia o alcance do poder, mas também a sua volatilidade e risco de radicalização. Este artigo analisa esta dualidade, articulando as contribuições de Bourdieu, Foucault, Castells, Coleman, Axelrod e Gambetta, entre outros, para compreender como o poder se forma, circula e se dissolve nas arquiteturas sociais contemporâneas.
1. A estrutura dos mundos pequenos e a lógica relacional do poder
A experiência de Milgram (1967) sobre os “seis graus de separação” demonstrou empiricamente que os indivíduos estão ligados entre si por um número surpreendentemente pequeno de intermediações. Posteriormente, Watts e Strogatz (1998) demonstraram matematicamente que as redes humanas exibem simultaneamente alta aglomeração local e curtos caminhos globais, criando o que denominaram “small-world networks”.
Esta estrutura híbrida — composta por clusters densos e algumas ligações longas — reflete, em escala formal, aquilo que a sociologia sempre reconheceu: as sociedades são compostas por microgrupos de confiança interligados por pontes sociais. É precisamente nessa intersecção entre proximidade e distância que se produz o poder relacional (Bourdieu, 1980) e a tensão permanente entre cooperação e traição.
2. Cooperação e capital social nos grupos pequenos
Em redes de pequena escala — famílias, círculos profissionais, comunidades
locais — o poder decorre da densidade de laços sociais.
Pierre Bourdieu define o capital social como
“o conjunto de recursos atuais ou potenciais ligados à posse de uma rede durável
de relações de conhecimento e reconhecimento” (Le sens pratique,
1980).
Nessas redes, a cooperação baseia-se em reputação, reciprocidade e vigilância difusa. O indivíduo acumula poder não por força direta, mas por legitimidade simbólica, isto é, pelo reconhecimento dos outros. A traição — quebra da confiança — tem um custo elevado, pois compromete o capital social acumulado e pode significar a exclusão do campo.
Este padrão relaciona-se com o que James Coleman (1990)
designa por “crédito social”: a confiança é um ativo coletivo que sustenta a
ação coordenada. As redes densas reduzem custos de transação, promovem
solidariedade e estabilizam normas.
Do ponto de vista da teoria dos jogos, Robert Axelrod (1984)
demonstrou que, em contextos de interação repetida, a cooperação emerge como
estratégia racional (“Tit-for-Tat”), enquanto a traição se torna
autodestrutiva quando os atores antecipam reencontros futuros.
Assim, a estrutura dos mundos pequenos confere vantagem evolutiva à cooperação: proximidade e repetição criam incentivos para comportamentos cooperativos e para a consolidação de poder por via reputacional.
3. Traição e poder de intermediação
A mesma estrutura que favorece a coesão local cria posições de ponte
entre grupos — os chamados brokers ou intermediários
estruturais.
Segundo Ronald Burt (1992), os indivíduos que ocupam buracos
estruturais entre clusters desconectados controlam fluxos de
informação e recursos, adquirindo um tipo específico de poder: o poder
de corretagem.
Esses intermediários beneficiam de múltiplos pertencimentos e podem converter capital social em capital simbólico, mas a sua posição é moralmente ambígua. Ao transitar entre redes, arriscam ser vistos como traidores pelos grupos de origem. O poder de mediação, portanto, nasce do mesmo princípio que a desconfiança: a capacidade de circular entre universos fechados sem ser expulso de nenhum.
4. O colapso da confiança nas redes abertas
A digitalização das relações humanas alterou radicalmente o equilíbrio entre
proximidade e distância.
Na sociedade em rede descrita por Manuel Castells (1996), as
ligações deixam de depender da co-presença e passam a ser mediadas por
algoritmos e plataformas.
Estas redes possuem topologia “small-world” global, onde
poucos “atalhos” bastam para conectar milhões de pessoas, mas onde a
confiança interpessoal é substituída por identificação simbólica.
Nas redes sociais, a cooperação é efémera e frequentemente performativa
— medida por curtidas, partilhas ou adesão a causas. A traição
adquire uma nova forma: cancelamento, shaming e exclusão
pública.
Como observa Zeynep Tufekci (2017), a força dos movimentos
digitais reside na rapidez da mobilização, mas a sua fraqueza está na falta de
estrutura e na volatilidade da lealdade.
Foucault (1975) oferece aqui uma leitura complementar: o poder contemporâneo é difuso e disciplinar, sustentado por mecanismos de vigilância horizontal. As redes digitais amplificam este processo: a visibilidade constante transforma todos em observadores e observados. A cooperação torna-se, assim, um ato de conformidade, e a traição, um gesto de resistência.
5. Da cooperação racional à cooperação emocional
A transição do vínculo pessoal para o vínculo algorítmico alterou o regime
da confiança.
Enquanto nas redes densas a cooperação é racional e cumulativa, nas redes
digitais é emocional e episódica.
Diego Gambetta (1988) explica que a confiança é uma inferência
probabilística baseada em sinais custosos — atos que implicam
risco e esforço, e que, por isso, são credíveis.
Nas redes digitais, os sinais são baratos e fáceis de falsificar:
likes, perfis anónimos, declarações públicas de apoio. Essa
desvalorização dos sinais corrói o capital social e facilita a infiltração
de grupos extremistas, que exploram a topologia de mundo pequeno para
difundir narrativas polarizadoras com enorme rapidez.
A cooperação, neste contexto, é frequentemente um ato de identificação emocional, não de confiança recíproca. A traição torna-se então inevitável — não como desvio moral, mas como consequência estrutural de uma rede sem densidade moral nem laços custosos.
6. Poder, radicalização e volatilidade
As redes digitais globais reconfiguram o acesso ao poder: este já não reside
apenas na posição de centralidade estável (Bourdieu), mas na capacidade
de amplificação (Castells).
Grupos radicalizados aproveitam a estrutura de mundo pequeno para criar efeitos
de cascata: pequenas comunidades densas (alta coesão interna) ligadas
por pontes fracas (atalhos digitais) tornam-se máquinas de difusão
ideológica.
A cooperação dentro desses grupos é absoluta — baseada em lealdade simbólica —, mas o ambiente externo é de conflito permanente. O poder, nestes casos, não é institucional, mas disruptivo: um poder de curto alcance que depende da visibilidade e do contágio, e que se extingue tão rapidamente quanto se forma.
A traição, aqui, é muitas vezes instrumental: a deserção ou denúncia de um grupo radical pode gerar novo capital simbólico — o “arrependido” como fonte de autoridade. A dinâmica do poder torna-se, portanto, fluida, reversível e emocionalmente instável.
7. Conclusão: a ambivalência estrutural dos mundos pequenos
A teoria dos mundos pequenos fornece uma chave poderosa para compreender o
paradoxo contemporâneo: quanto mais conectados estamos, mais
fragmentadas se tornam as formas de poder e de confiança.
Nos grupos pequenos, a cooperação é a base da ordem e o meio de ascensão; nas
redes abertas, a cooperação é momentânea e a traição é o motor da mudança.
A sociologia do século XXI enfrenta o desafio de compreender esta ambivalência
estrutural — entre a densidade que produz poder legítimo
e a fluidez que produz poder efémero.
Como lembrava Bourdieu, “o poder simbólico é um poder que não se exerce senão
com a cumplicidade dos que lhe estão sujeitos” — e, nas redes digitais, essa
cumplicidade tornou-se mais ampla, mas também mais volátil.
O estudo da cooperação e da traição em contextos de mundo pequeno não é apenas uma análise teórica: é um campo empírico fundamental para compreender as formas emergentes de autoridade, influência e resistência na sociedade em rede.
Referências Bibliográficas
· Axelrod, R. (1984). The Evolution of Cooperation. Basic Books.
· Bourdieu, P. (1980). Le sens pratique. Les Éditions de Minuit.
· Burt, R. S. (1992). Structural Holes: The Social Structure of Competition. Harvard University Press.
· Castells, M. (1996). The Rise of the Network Society. Blackwell.
· Coleman, J. S. (1990). Foundations of Social Theory. Harvard University Press.
· Foucault, M. (1975). Surveiller et punir: Naissance de la prison. Gallimard.
· Gambetta, D. (1988). Trust: Making and Breaking Cooperative Relations. Basil Blackwell.
· Granovetter, M. (1973). “The Strength of Weak Ties”. American Journal of Sociology, 78(6), 1360–1380.
· Milgram, S. (1967). “The Small World Problem”. Psychology Today, 2, 60–67.
· Tufekci, Z. (2017). Twitter and Tear Gas: The Power and Fragility of Networked Protest. Yale University Press.
· Watts, D. J. & Strogatz, S. H. (1998). “Collective dynamics of ‘small-world’ networks”. Nature, 393(6684), 440–442.