Resumo:
Este artigo propõe o conceito de "Estado Inviável" como uma categoria analítica distinta dos conceitos clássicos de Estado falhado, Estado frágil e Estado-cliente. O Estado Inviável é definido como uma entidade que, embora reconhecida diplomaticamente e com estruturas institucionais formais, é estruturalmente incapaz de garantir a sua existência sem intervenção externa constante em áreas-chave como segurança, economia e diplomacia. Com base em indicadores empíricos e numa revisão crítica da literatura sobre soberania, dependência e capacidade estatal, o artigo distingue esta categoria de outras já consagradas na literatura e propõe um quadro analítico para a sua aplicação empírica.
1. Introdução
O conceito de Estado continua a ser central nas ciências sociais e nas relações internacionais. No entanto, diversas situações contemporâneas desafiam as tipologias clássicas entre Estados fortes, fracos e falhados. O caso de entidades formalmente soberanas, mas cuja existência prática depende de apoios externos, evidencia a necessidade de uma nova categoria analítica. Neste contexto, introduz-se o conceito de "Estado Inviável".
2. Revisão da Literatura
A discussão teórica que sustenta o conceito de Estado Inviável apoia-se em diversos autores e tradições analíticas. Max Weber, ao definir o Estado como a entidade que detém o monopólio legítimo da violência sobre um território, oferece o ponto de partida para avaliar até que ponto a soberania é efectiva ou meramente formal. Charles Tilly complementa esta visão ao associar a construção do Estado à capacidade de extracção de recursos e defesa, sublinhando que a fragilidade coerciva e extractiva compromete a autonomia estatal.
Stephen Krasner, por sua vez, introduz o conceito de soberania "organizada hipocrisia", sugerindo que muitas entidades estatais mantêm a aparência da soberania enquanto operam sob constrangimentos externos — o que se aproxima da ideia de soberania simulada proposta neste artigo.
Robert Rotberg e Ashraf Ghani abordam os Estados falhados e frágeis através da sua incapacidade em prestar serviços básicos e manter ordem interna, distinguindo os graus de colapso funcional. No entanto, estas abordagens não captam os casos em que o Estado funciona apenas com suporte externo permanente — o foco do Estado Inviável.
A teoria da dependência, desenvolvida por autores como Andre Gunder Frank, Fernando Henrique Cardoso e Adam Przeworski, explora a inserção periférica das economias no sistema global e as limitações estruturais que impedem a autonomia. A lógica da dependência estrutural ajuda a compreender como Estados aparentemente viáveis permanecem subordinados a agendas externas.
Por fim, os conceitos de Estado-cliente e protetorado explicam formas históricas e actuais de subordinação política, geralmente no contexto de relações bilaterais assimétricas, enquanto a literatura sobre quasi-Estados (ex. Abkházia, Transnístria) e entidades não-reconhecidas analisa estruturas políticas com soberania contestada. Todos estes contributos ajudam a delimitar o que distingue o Estado Inviável: a presença de soberania formal, mas a ausência de autonomia funcional sustentada.
3. Definição e Fundamentos
do Conceito de Estado Inviável
Um Estado Inviável é uma entidade que preserva estruturas formais de Estado e reconhecimento internacional, mas é estruturalmente incapaz de garantir segurança, serviços públicos e autonomia política sem dependência prolongada de actores externos. Define-se por:
3.1 Manutenção institucional e soberania formal;
3.2 Incapacidade funcional para o exercício autónomo de competências estatais;
3.3 Dependência externa constante nas dimensões económica, militar ou diplomática.
Para ilustrar estes critérios, podem referir-se exemplos empíricos:
A manutenção de estruturas formais é visível no caso da Palestina, que possui um governo, administração e reconhecimento parcial por parte da comunidade internacional, embora sem controlo efectivo sobre o seu território. A incapacidade funcional manifesta-se, por exemplo, em Timor-Leste, onde a provisão de serviços essenciais e a segurança nacional dependeram durante anos de missões internacionais e ajudas financeiras bilaterais. Quanto à dependência estrutural, Abkásia exemplifica bem esta condição, funcionando como uma entidade governativa sob forte apoio financeiro, militar e diplomático da Rússia, sem o qual dificilmente manteria o seu funcionamento quotidiano.
Distingue-se de outras categorias por preservar a forma estatal sem conteúdo soberano substantivo, ou seja, existe uma arquitectura institucional e reconhecimento formal, mas a autonomia real do Estado está comprometida em permanência por uma teia de dependências externas.
4. Quadro Analítico e
Métricas de Avaliação
Apresenta-se um conjunto de indicadores empíricos para avaliar a inviabilidade:
· Capacidade coercitiva (forças armadas, presença externa);
· Capacidade administrativa (eficácia governativa, extração fiscal);
· Dependência económica (ajuda externa, dívida, ODA);
· Dependência diplomática (alinhamento político, condicionalidades).
5. Estudo de Caso:
Timor-Leste, Palestina e Abkásia
Aplica-se o quadro analítico a três casos exemplares, evidenciando com dados específicos a classificação como Estados Inviáveis:
· Timor-Leste: Apesar da independência formal em 2002, Timor-Leste continua altamente dependente de ajuda externa. De acordo com dados do Banco Mundial, a ajuda oficial ao desenvolvimento (ODA) correspondeu a mais de 30% do RNB em vários anos da década de 2000 e permanece elevada. A presença de forças internacionais (INTERFET, UNTAET e posteriores missões da ONU) assegurou a ordem pública e a construção institucional. As receitas fiscais são quase exclusivamente provenientes do Fundo do Petróleo, tornando o orçamento estatal vulnerável à volatilidade externa.
· Palestina: A Autoridade Palestiniana exerce jurisdição limitada sobre partes da Cisjordânia, estando a Faixa de Gaza sob o controlo do Hamas. A dependência da ajuda internacional é estrutural, com mais de 25% do PIB a provir de doadores estrangeiros. A segurança interna é condicionada por coordenação com Israel e intervenções externas, enquanto o controlo de fronteiras, circulação de bens e pessoas e espaço aéreo permanece fora do alcance do governo palestiniano.
· Abkásia: Reconhecida apenas por um pequeno número de países, a Abkásia é um caso paradigmático de viabilidade formal com total dependência funcional. Cerca de metade do seu orçamento anual provém de transferências diretas da Rússia, que também garante a defesa militar do território, distribui passaportes aos cidadãos e mantém influência total na política externa da região. A falta de reconhecimento internacional limita severamente a sua capacidade de estabelecer relações económicas e diplomáticas independentes.
Estes casos revelam padrões distintos de inviabilidade: económica e institucional (Timor-Leste), política e securitária (Palestina) e estrutural e diplomática (Abkásia), reforçando a utilidade analítica do conceito proposto. Estes padrões distintos demonstram a aplicabilidade do conceito de Estado Inviável a realidades diversas, em que a soberania formal não se traduz em autonomia funcional.
6. Conclusão
O conceito de Estado Inviável permite compreender uma categoria intersticial de
soberania formal sem funcionalidade substantiva. O artigo sugere que esta
categoria pode ser particularmente útil para compreender Estados sob tutela
internacional, territórios semi-reconhecidos e casos de soberania simulada.
Propõe-se o alargamento do debate em contextos comparativos e a integração do
conceito em análises de política externa, ajuda internacional e segurança
regional.
As implicações políticas do conceito são múltiplas. Em primeiro lugar, desafia a visão normativa do reconhecimento diplomático como critério suficiente de legitimidade estatal, obrigando os actores internacionais a considerar a funcionalidade efectiva dos Estados que apoiam. Em segundo lugar, introduz um critério crítico para avaliar a sustentabilidade de intervenções internacionais prolongadas, que podem mascarar inviabilidades estruturais ao invés de as resolver. Por fim, este conceito levanta questões fundamentais sobre a autodeterminação e a eficácia da soberania num sistema internacional em que múltiplos Estados sobrevivem apenas sob tutela externa. Esta abordagem pode contribuir para reformular a forma como se concebem as estratégias de cooperação, reconstrução e desenvolvimento em contextos frágeis e para redefinir as responsabilidades dos actores externos nesses processos.
Apêndice: Indicadores Empíricos por Dimensão Analítica
Nota Metodológica Os indicadores empíricos utilizados foram seleccionados com base na sua relevância para medir aspectos estruturais da soberania efectiva dos Estados. As fontes incluem dados do Banco Mundial (World Development Indicators), da OCDE (Official Development Assistance), e de relatórios internacionais e académicos sobre segurança e governação. Devido a limitações de disponibilidade, alguns valores foram interpretados com base em estimativas qualitativas provenientes de fontes secundárias confiáveis. A classificação qualitativa (Alta / Média / Baixa) reflete tendências consistentes, não valores absolutos.
Síntese por Dimensão e Caso (classificação qualitativa)
· Capacidade Coercitiva
o Timor-Leste: Baixa (missões internacionais até 2012, força limitada própria)
o Palestina: Baixa (sem controlo efectivo, presença de forças israelitas)
o Abkásia: Média (segurança garantida pela Rússia)
· Capacidade Administrativa
o Timor-Leste: Média (instituições em consolidação, dependência técnica)
o Palestina: Média-Baixa (limitações territoriais, capacidade parcial)
o Abkásia: Média (estrutura estatal funcional, sob tutela)
· Dependência Económica
o Timor-Leste: Alta (ODA > 30% RNB em vários anos, Fundo do Petróleo)
o Palestina: Alta (ajuda externa sistemática, dependência doadores)
o Abkásia: Alta (≈50% do orçamento financiado pela Rússia)
· Dependência Diplomática
o Timor-Leste: Média (autonomia parcial, forte cooperação bilateral)
o Palestina: Alta (reconhecimento parcial, dependência estratégica)
o Abkásia: Alta (reconhecimento limitado, tutela russa)
Referências Bibliográficas
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