19.6.25

O Conceito de Estado Inviável: Entre a Soberania Formal e a Dependência Funcional

 

Resumo:

Este artigo propõe o conceito de "Estado Inviável" como uma categoria analítica distinta dos conceitos clássicos de Estado falhado, Estado frágil e Estado-cliente. O Estado Inviável é definido como uma entidade que, embora reconhecida diplomaticamente e com estruturas institucionais formais, é estruturalmente incapaz de garantir a sua existência sem intervenção externa constante em áreas-chave como segurança, economia e diplomacia. Com base em indicadores empíricos e numa revisão crítica da literatura sobre soberania, dependência e capacidade estatal, o artigo distingue esta categoria de outras já consagradas na literatura e propõe um quadro analítico para a sua aplicação empírica.

1. Introdução

O conceito de Estado continua a ser central nas ciências sociais e nas relações internacionais. No entanto, diversas situações contemporâneas desafiam as tipologias clássicas entre Estados fortes, fracos e falhados. O caso de entidades formalmente soberanas, mas cuja existência prática depende de apoios externos, evidencia a necessidade de uma nova categoria analítica. Neste contexto, introduz-se o conceito de "Estado Inviável".

2. Revisão da Literatura

A discussão teórica que sustenta o conceito de Estado Inviável apoia-se em diversos autores e tradições analíticas. Max Weber, ao definir o Estado como a entidade que detém o monopólio legítimo da violência sobre um território, oferece o ponto de partida para avaliar até que ponto a soberania é efectiva ou meramente formal. Charles Tilly complementa esta visão ao associar a construção do Estado à capacidade de extracção de recursos e defesa, sublinhando que a fragilidade coerciva e extractiva compromete a autonomia estatal.

Stephen Krasner, por sua vez, introduz o conceito de soberania "organizada hipocrisia", sugerindo que muitas entidades estatais mantêm a aparência da soberania enquanto operam sob constrangimentos externos — o que se aproxima da ideia de soberania simulada proposta neste artigo.

Robert Rotberg e Ashraf Ghani abordam os Estados falhados e frágeis através da sua incapacidade em prestar serviços básicos e manter ordem interna, distinguindo os graus de colapso funcional. No entanto, estas abordagens não captam os casos em que o Estado funciona apenas com suporte externo permanente — o foco do Estado Inviável.

A teoria da dependência, desenvolvida por autores como Andre Gunder Frank, Fernando Henrique Cardoso e Adam Przeworski, explora a inserção periférica das economias no sistema global e as limitações estruturais que impedem a autonomia. A lógica da dependência estrutural ajuda a compreender como Estados aparentemente viáveis permanecem subordinados a agendas externas.

Por fim, os conceitos de Estado-cliente e protetorado explicam formas históricas e actuais de subordinação política, geralmente no contexto de relações bilaterais assimétricas, enquanto a literatura sobre quasi-Estados (ex. Abkházia, Transnístria) e entidades não-reconhecidas analisa estruturas políticas com soberania contestada. Todos estes contributos ajudam a delimitar o que distingue o Estado Inviável: a presença de soberania formal, mas a ausência de autonomia funcional sustentada.

3. Definição e Fundamentos do Conceito de Estado Inviável

Um Estado Inviável é uma entidade que preserva estruturas formais de Estado e reconhecimento internacional, mas é estruturalmente incapaz de garantir segurança, serviços públicos e autonomia política sem dependência prolongada de actores externos. Define-se por:

3.1 Manutenção institucional e soberania formal;

3.2 Incapacidade funcional para o exercício autónomo de competências estatais;

3.3 Dependência externa constante nas dimensões económica, militar ou diplomática.

Para ilustrar estes critérios, podem referir-se exemplos empíricos:

A manutenção de estruturas formais é visível no caso da Palestina, que possui um governo, administração e reconhecimento parcial por parte da comunidade internacional, embora sem controlo efectivo sobre o seu território. A incapacidade funcional manifesta-se, por exemplo, em Timor-Leste, onde a provisão de serviços essenciais e a segurança nacional dependeram durante anos de missões internacionais e ajudas financeiras bilaterais. Quanto à dependência estrutural, Abkásia exemplifica bem esta condição, funcionando como uma entidade governativa sob forte apoio financeiro, militar e diplomático da Rússia, sem o qual dificilmente manteria o seu funcionamento quotidiano.

Distingue-se de outras categorias por preservar a forma estatal sem conteúdo soberano substantivo, ou seja, existe uma arquitectura institucional e reconhecimento formal, mas a autonomia real do Estado está comprometida em permanência por uma teia de dependências externas.

4. Quadro Analítico e Métricas de Avaliação

Apresenta-se um conjunto de indicadores empíricos para avaliar a inviabilidade:

·         Capacidade coercitiva (forças armadas, presença externa);

·         Capacidade administrativa (eficácia governativa, extração fiscal);

·         Dependência económica (ajuda externa, dívida, ODA);

·         Dependência diplomática (alinhamento político, condicionalidades).

5. Estudo de Caso: Timor-Leste, Palestina e Abkásia

Aplica-se o quadro analítico a três casos exemplares, evidenciando com dados específicos a classificação como Estados Inviáveis:

·         Timor-Leste: Apesar da independência formal em 2002, Timor-Leste continua altamente dependente de ajuda externa. De acordo com dados do Banco Mundial, a ajuda oficial ao desenvolvimento (ODA) correspondeu a mais de 30% do RNB em vários anos da década de 2000 e permanece elevada. A presença de forças internacionais (INTERFET, UNTAET e posteriores missões da ONU) assegurou a ordem pública e a construção institucional. As receitas fiscais são quase exclusivamente provenientes do Fundo do Petróleo, tornando o orçamento estatal vulnerável à volatilidade externa.

·         Palestina: A Autoridade Palestiniana exerce jurisdição limitada sobre partes da Cisjordânia, estando a Faixa de Gaza sob o controlo do Hamas. A dependência da ajuda internacional é estrutural, com mais de 25% do PIB a provir de doadores estrangeiros. A segurança interna é condicionada por coordenação com Israel e intervenções externas, enquanto o controlo de fronteiras, circulação de bens e pessoas e espaço aéreo permanece fora do alcance do governo palestiniano.

·         Abkásia: Reconhecida apenas por um pequeno número de países, a Abkásia é um caso paradigmático de viabilidade formal com total dependência funcional. Cerca de metade do seu orçamento anual provém de transferências diretas da Rússia, que também garante a defesa militar do território, distribui passaportes aos cidadãos e mantém influência total na política externa da região. A falta de reconhecimento internacional limita severamente a sua capacidade de estabelecer relações económicas e diplomáticas independentes.

Estes casos revelam padrões distintos de inviabilidade: económica e institucional (Timor-Leste), política e securitária (Palestina) e estrutural e diplomática (Abkásia), reforçando a utilidade analítica do conceito proposto. Estes padrões distintos demonstram a aplicabilidade do conceito de Estado Inviável a realidades diversas, em que a soberania formal não se traduz em autonomia funcional.

6. Conclusão
O conceito de Estado Inviável permite compreender uma categoria intersticial de soberania formal sem funcionalidade substantiva. O artigo sugere que esta categoria pode ser particularmente útil para compreender Estados sob tutela internacional, territórios semi-reconhecidos e casos de soberania simulada. Propõe-se o alargamento do debate em contextos comparativos e a integração do conceito em análises de política externa, ajuda internacional e segurança regional.

As implicações políticas do conceito são múltiplas. Em primeiro lugar, desafia a visão normativa do reconhecimento diplomático como critério suficiente de legitimidade estatal, obrigando os actores internacionais a considerar a funcionalidade efectiva dos Estados que apoiam. Em segundo lugar, introduz um critério crítico para avaliar a sustentabilidade de intervenções internacionais prolongadas, que podem mascarar inviabilidades estruturais ao invés de as resolver. Por fim, este conceito levanta questões fundamentais sobre a autodeterminação e a eficácia da soberania num sistema internacional em que múltiplos Estados sobrevivem apenas sob tutela externa. Esta abordagem pode contribuir para reformular a forma como se concebem as estratégias de cooperação, reconstrução e desenvolvimento em contextos frágeis e para redefinir as responsabilidades dos actores externos nesses processos.

Apêndice: Indicadores Empíricos por Dimensão Analítica

Nota Metodológica Os indicadores empíricos utilizados foram seleccionados com base na sua relevância para medir aspectos estruturais da soberania efectiva dos Estados. As fontes incluem dados do Banco Mundial (World Development Indicators), da OCDE (Official Development Assistance), e de relatórios internacionais e académicos sobre segurança e governação. Devido a limitações de disponibilidade, alguns valores foram interpretados com base em estimativas qualitativas provenientes de fontes secundárias confiáveis. A classificação qualitativa (Alta / Média / Baixa) reflete tendências consistentes, não valores absolutos.

Síntese por Dimensão e Caso (classificação qualitativa)

·         Capacidade Coercitiva

o    Timor-Leste: Baixa (missões internacionais até 2012, força limitada própria)

o    Palestina: Baixa (sem controlo efectivo, presença de forças israelitas)

o    Abkásia: Média (segurança garantida pela Rússia)

·         Capacidade Administrativa

o    Timor-Leste: Média (instituições em consolidação, dependência técnica)

o    Palestina: Média-Baixa (limitações territoriais, capacidade parcial)

o    Abkásia: Média (estrutura estatal funcional, sob tutela)

·         Dependência Económica

o    Timor-Leste: Alta (ODA > 30% RNB em vários anos, Fundo do Petróleo)

o    Palestina: Alta (ajuda externa sistemática, dependência doadores)

o    Abkásia: Alta (≈50% do orçamento financiado pela Rússia)

·         Dependência Diplomática

o    Timor-Leste: Média (autonomia parcial, forte cooperação bilateral)

o    Palestina: Alta (reconhecimento parcial, dependência estratégica)

o    Abkásia: Alta (reconhecimento limitado, tutela russa)

Referências Bibliográficas
Cardoso, F. H., & Faletto, E. (1979). Dependência e desenvolvimento na América Latina. Zahar.
Frank, A. G. (1969). Capitalism and Underdevelopment in Latin America. Monthly Review Press.
Ghani, A., & Lockhart, C. (2008). Fixing Failed States: A Framework for Rebuilding a Fractured World. Oxford University Press.
Krasner, S. D. (1999). Sovereignty: Organized Hypocrisy. Princeton University Press.
Przeworski, A. (2010). Democracy and the Market: Political and Economic Reforms in Eastern Europe and Latin America. Cambridge University Press.
Rotberg, R. I. (2004). When States Fail: Causes and Consequences. Princeton University Press.
Tilly, C. (1990). Coercion, Capital, and European States, AD 990–1990. Blackwell.
Weber, M. (1919). Politics as a Vocation. Lecture.
World Bank. (2023). World Development Indicators.
https://databank.worldbank.org
OECD. (2023). Official Development Assistance Statistics.
https://www.oecd.org/dac/financing-sustainable-development/development-finance-data/
UNDP. (2022). Human Development Report.

12.6.25

Ação do Passado nas Disposições, Estruturas e a Formação do Comportamento Social

 

A ideia de que o comportamento humano é profundamente influenciado por experiências passadas e contextos sociais adquiridos tem sido desenvolvida em diversas tradições sociológicas. Embora com diferentes enquadramentos teóricos, autores como Pierre Bourdieu, Émile Durkheim, Norbert Elias, Marcel Mauss, Alfred Schutz e Anthony Giddens convergem na análise dos mecanismos que explicam a interiorização de normas, valores e perceções ao longo da vida.

Pierre Bourdieu, com o conceito de habitus, propõe uma abordagem centrada nas disposições incorporadas pelos indivíduos ao longo do processo de socialização. Estas disposições, adquiridas de forma histórica e social, orientam perceções e práticas de modo duradouro. Segundo Bourdieu, o habitus é “estrutura estruturada” porque resulta de condições objetivas passadas, e “estrutura estruturante” porque influencia as ações futuras, ainda que de forma inconsciente. Desta forma, os indivíduos tendem a reproduzir os padrões sociais sem necessidade de coerção exterior visível.

Émile Durkheim, numa abordagem anterior e estruturalista, introduziu o conceito de fatos sociais para descrever formas coletivas de pensar, sentir e agir que se impõem ao indivíduo. Estes fatos são transmitidos através da socialização e exercem um poder coercivo, ainda que interiorizado. Para Durkheim, a sociedade antecede o indivíduo e molda as suas condutas a partir de instituições como a escola, a religião ou a família.

Norbert Elias, por seu lado, explora o longo processo histórico de constituição de comportamentos sociais no que designa por processo civilizacional. A tese central sustenta que a progressiva complexificação das relações sociais gerou uma interiorização crescente do controlo emocional e comportamental. A formação de uma “auto-regulação” das emoções não surge de imposições diretas, mas de transformações estruturais nas formas de convivência social ao longo dos séculos.

Marcel Mauss contribui para esta discussão ao demonstrar, no ensaio As Técnicas do Corpo, que mesmo os gestos mais elementares — como andar, sentar ou nadar — são aprendidos socialmente e não surgem de instintos naturais. Através da noção de “técnicas corporais”, Mauss mostra como as práticas quotidianas são adquiridas por imitação e ajustadas às exigências culturais do grupo a que se pertence.

A fenomenologia de Alfred Schutz introduz outra dimensão: a da experiência subjetiva. Para Schutz, os indivíduos percebem o mundo social através de esquemas de interpretação sedimentados no passado. As ações presentes são, assim, compreendidas com base em significados construídos anteriormente e partilhados socialmente, mesmo sem consciência reflexiva sobre essa herança.

Por fim, Anthony Giddens desenvolve a teoria da estruturação, que, embora dialogue criticamente com Bourdieu, reconhece que as práticas sociais estão enraizadas em estruturas que os indivíduos reproduzem ao agir. A novidade introduzida por Giddens está na ênfase da dualidade estrutura/ação: os indivíduos não são apenas produtos das estruturas, mas também agentes da sua reprodução ou transformação. As rotinas sociais, aprendidas ao longo do tempo, tornam-se recursos mobilizados na ação, contribuindo para a continuidade dos sistemas sociais.

Apesar das diferenças terminológicas e metodológicas entre estes autores, todos partem do princípio de que as atitudes, escolhas e perceções dos indivíduos não se explicam unicamente pela ação racional ou por estímulos imediatos. São, antes, o resultado de processos históricos, culturais e sociais, frequentemente invisíveis ou naturalizados, que moldam a forma como se pensa, sente e age no presente.

11.6.25

Correção e Contaminação: Jornalismo, Desinformação e o Efeito da Influência Contínua

 

A emergência da desinformação enquanto força estrutural nos ecossistemas mediáticos contemporâneos revelou não apenas a fragilidade dos públicos face à manipulação, mas também as limitações do jornalismo na sua função corretiva. Ao contrário do ideal normativo de “corrigir o erro e restabelecer a verdade”, vários estudos demonstram que a exposição inicial a uma informação falsa ou enganadora continua a influenciar os indivíduos mesmo depois de essa informação ter sido desmentida. Este fenómeno, conhecido como efeito da influência contínua (continued influence effect), coloca em causa a eficácia do jornalismo tradicional como instância de verificação e mediação da realidade.

O Conceito e os Seus Fundadores

O efeito da influência contínua foi primeiramente descrito por psicólogos cognitivos como Stephan Lewandowsky, Ullrich K. H. Ecker e David K. Sears, através de estudos experimentais que demonstravam como a correção posterior de uma notícia falsa raramente eliminava o seu impacto original. Num dos seus estudos mais citados, Lewandowsky e Ecker apresentaram a participantes uma narrativa sobre um incêndio num armazém que, inicialmente, atribuía a causa a materiais inflamáveis. Apesar de a informação ter sido posteriormente corrigida, a maioria dos participantes continuava a referir os materiais como causa provável do acidente (Lewandowsky et al., 2012).

Este padrão repete-se em domínios como política, saúde pública ou catástrofes, onde os media desempenham um papel central na circulação e legitimação da informação. A persistência do erro não decorre apenas da falibilidade humana, mas sobretudo da forma como o jornalismo estrutura a narrativa, dá primazia ao ineditismo e nem sempre garante a visibilidade ou a força retórica das correções.

A Ilusão da Correção e a Responsabilidade Jornalística

A crença de que basta corrigir para “anular” o impacto de uma mentira revela uma ingenuidade epistemológica no seio das práticas jornalísticas. Como demonstram Pennycook e Rand (2019), a simples marcação de uma notícia como falsa não é suficiente para neutralizar o seu efeito se esta já tiver sido interiorizada como plausível. A repetição, a familiaridade e o enquadramento emocional aumentam a credibilidade percebida da desinformação — um fenómeno designado por illusory truth effect, também identificado por Fazio et al. (2015).

A este respeito, os media não são apenas vítimas da desinformação: são também vetores da sua circulação inicial, sobretudo quando priorizam a velocidade à verificação. A dependência de breaking news, a pressão das audiências e a lógica de mercado favorecem a publicação prematura de conteúdos ainda não confirmados, que ganham tração antes que os factos possam ser solidamente verificados. Mesmo quando corrigidos posteriormente, o dano cognitivo está feito — e raramente é revertido.

Fact-checking e os Seus Limites

Organizações de fact-checking têm procurado contrariar este efeito, mas enfrentam barreiras semelhantes. Segundo Brashier e Marsh (2020), correções são mais eficazes quando incluem uma explicação plausível alternativa e são apresentadas de forma clara, visualmente apelativa e com fontes credíveis. No entanto, os media convencionais muitas vezes apenas negam ou desmentem, sem contextualizar ou oferecer uma narrativa substitutiva — o que, paradoxalmente, pode reforçar a crença original.

Além disso, o fenómeno do backfire effect (Reifler & Nyhan, 2010) sugere que, em contextos polarizados, as correções podem ser interpretadas como um ataque ideológico, reforçando a desconfiança e cristalizando as crenças. Embora este efeito tenha sido relativizado em estudos mais recentes, o seu impacto em temas politicamente carregados continua a ser uma preocupação real para jornalistas.

Prebunking: A Prevenção como Estratégia

Uma abordagem mais promissora é a do prebunking ou inoculação — isto é, a introdução de informação correta antes que o indivíduo seja exposto à desinformação. Lewandowsky e Cook (2020), no "Debunking Handbook 2020", argumentam que alertar previamente para as técnicas retóricas usadas na manipulação de informação pode reduzir significativamente a sua eficácia. No entanto, esta abordagem preventiva exige planeamento editorial, educação mediática e cooperação entre jornalistas, académicos e plataformas digitais — algo que ainda está longe de ser prática corrente.

Entre a Ética e o Algoritmo

Por fim, o efeito da influência contínua obriga os jornalistas a refletir não apenas sobre o quê noticiar, mas como e quando o fazer. Numa era em que as plataformas algoritmizadas amplificam conteúdos sem distinção entre verdade e falsidade, os media devem assumir uma função crítica e autoconsciente: questionar a sua cumplicidade nos ciclos virais de desinformação e desenvolver formas de comunicação que reconheçam os limites cognitivos do seu público.

Correções discretas em rodapés, desmentidos tardios ou declarações neutras não são suficientes. É necessário repensar o jornalismo não como reparador da verdade, mas como mediador de complexidade, antecipando a manipulação e educando para a incerteza. Tal como alertou Norbert Schwarz (2016), "as pessoas não acreditam naquilo que é verdadeiro; acreditam no que lhes soa familiar". Tornar a verdade familiar — repetida, compreensível e emocionalmente relevante — pode ser o maior desafio ético e estratégico do jornalismo no século XXI.


Referências:

  • Lewandowsky, S., Ecker, U. K. H., Seifert, C. M., Schwarz, N., & Cook, J. (2012). Misinformation and Its Correction: Continued Influence and Successful Debiasing. Psychological Science in the Public Interest.
  • Lewandowsky, S. & Cook, J. (2020). The Debunking Handbook 2020.
  • Fazio, L. K., Brashier, N. M., Payne, B. K., & Marsh, E. J. (2015). Knowledge Does Not Protect Against Illusory Truth. Journal of Experimental Psychology.
  • Pennycook, G., & Rand, D. G. (2019). Lazy, Not Biased: Susceptibility to Partisan Fake News Is Better Explained by Lack of Reasoning Than by Motivated Reasoning. Cognition.
  • Nyhan, B., & Reifler, J. (2010). When Corrections Fail: The Persistence of Political Misperceptions. Political Behavior.
  • Schwarz, N., Newman, E., & Leach, W. (2016). Making the Truth Stick & the Myths Fade: Lessons from Cognitive Psychology. Behavioral Science & Policy.

8.6.25

A Condição Feminina nas Grandes Religiões: Uma Leitura Crítica e Comparada

 

Resumo

Este artigo, editado a partir da pesquisa de Hamda Ouakel em "La Femme Bête Noire Des Religions" (https://kapitalis.com/tunisie/2016/08/23/la-femme-bete-noire-des-religions-16/), propõe uma análise crítica do lugar da mulher nas cinco principais religiões mundiais — Judaísmo, Cristianismo, Islão, Hinduísmo e Budismo — com base nas suas escrituras fundacionais e tradições teológicas. Apesar da diversidade cultural e temporal, observa-se um padrão estruturante: a mulher é sistematicamente posicionada como ser inferior, impuro, passível de controlo e alvo de exclusão social, espiritual e política. A investigação parte de uma abordagem comparativa e de uma hermenêutica crítica, apoiando-se tanto na exegese textual como em enquadramentos sociológicos. Conclui-se que a subalternização feminina não é um desvio das religiões, mas um elemento estrutural da sua génese e desenvolvimento. Por fim, propõe-se uma reflexão sobre os caminhos possíveis de superação deste paradigma.

1. Introdução: Religião, género e poder

A religião tem desempenhado um papel determinante na configuração dos sistemas sociais e das estruturas de poder. Não apenas define cosmovisões e comportamentos, como também estabelece normas de género, sexualidade, hierarquia e autoridade. Neste contexto, a posição da mulher nas religiões revela-se como um espelho da sua concepção antropológica: é a mulher sujeito moral, espiritual e político, ou é ela um apêndice do homem, subjugada à vontade divina mediada por figuras masculinas?

Este artigo investiga essa questão, recorrendo à análise de textos sagrados, jurisprudência religiosa e tradições doutrinais das cinco principais religiões históricas. A abordagem visa expor não apenas os traços comuns de marginalização feminina, mas também a lógica interna que sustenta essa marginalização: a construção da mulher como outro negativo — tentador, impuro, irracional ou submisso.

2. Judaísmo: a mulher como extensão do patriarca

A literatura judaica, nomeadamente a Torá e o Talmude, consagra uma estrutura legal e moral profundamente patriarcal. A mulher é, legalmente, propriedade do pai, do marido ou do irmão. A oração matinal masculina que agradece a Deus por "não ter nascido mulher" é sintomática do lugar feminino na ordem cosmoteológica. A mulher é excluída do sacerdócio, da herança em igualdade, da participação ativa no culto e, em muitos contextos, até da contagem para o minyan (quórum sagrado).

A pureza ritual também reforça esta exclusão: a mulher menstruada é considerada impura e deve ser isolada. A prática do lévirato, que transfere a viúva para o cunhado como parte da herança, inscreve o corpo feminino no universo económico, não no existencial.

3. Cristianismo: silêncio e submissão como virtudes

Embora o Novo Testamento introduza um discurso de abertura à inclusão moral das mulheres (Maria, Madalena, etc.), as epístolas paulinas e a patrística consolidam uma teologia do silêncio e da submissão. Textos como “a mulher cale-se nas assembleias” (1 Cor 14:34) ou “o homem é a cabeça da mulher” (Ef 5:23) consolidam a hierarquia de género como parte da ordem divina.

O magistério cristão impediu durante séculos o acesso das mulheres à leitura das Escrituras, ao ensino teológico e aos sacramentos da ordem. A virgindade e o martírio feminino tornaram-se formas simbólicas de obediência, esvaziando a agência feminina em nome de uma castidade espiritual.

4. Islão: tutela masculina e disciplina corporal

O Islão retoma e acentua a tutela masculina sobre a mulher. O versículo 4:34 do Corão estabelece que “os homens são os protetores das mulheres” e permite, em caso de desobediência, a separação no leito e a agressão física. A mulher é excluída da herança em igualdade (uma parte para a filha, duas para o filho), do testemunho jurídico completo (meio testemunho) e da liderança religiosa.

O uso obrigatório do véu, justificado por argumentos de “modéstia” ou “proteção”, reforça a ideia de que o corpo da mulher é uma ameaça moral — para o homem e para a sociedade. A sexualidade feminina é regulada em função da honra masculina, e o adultério pode ser punido com flagelação ou morte, em códigos inspirados nas primeiras interpretações corânicas.

5. Hinduísmo: castas, casamento infantil e invisibilidade

As Leis de Manu, texto basilar da normatividade hindu, descrevem a mulher como ser essencialmente dependente. Desde o nascimento até à morte, a mulher deve obedecer ao pai, ao marido ou ao filho. O casamento é um acordo entre famílias, sem espaço para o consentimento ou desejo feminino. A escolha amorosa é considerada impura. Casamentos infantis, poligamia legalizada e a exclusão da herança são normativos.

A sati — imolação ritual da viúva — foi uma prática social sustentada por esta ideologia: uma mulher sem marido é inútil, fonte de desonra. A mulher é uma oferenda, uma dádiva, uma moeda entre clãs — mas nunca sujeito.

6. Budismo: rejeição espiritual do feminino

Apesar do discurso mais espiritualizado do budismo, o corpo feminino é descrito como “impuro”, “cheio de excrementos”, “um vaso de lixo”, segundo textos fundadores como A Preciosa Grinalda. A mulher é considerada fonte de distração, obstáculo à iluminação e símbolo de ilusão. Mesmo Buda, em vários sutras, adverte os seus discípulos para se manterem afastados das mulheres, retratadas como enganosas, mentirosas e perversas.

A oração mais comum entre mulheres budistas é a de renascer como homem — sinal da sua exclusão espiritual. Mesmo nas tradições mais recentes, o acesso feminino ao ensino monástico ou à autoridade doutrinária continua limitado.

7. Padrões comuns e implicações

Apesar das diferenças históricas, culturais e linguísticas, há um padrão transversal nestas religiões:

·         A mulher é representada como fonte de desordem moral ou cósmica;

·         É frequentemente excluída da transmissão do saber religioso;

·         É desvalorizada nas estruturas de herança e autoridade;

·         O seu corpo é controlado, escondido ou punido;

·         A sua sexualidade é regulada em função da honra e da linhagem masculina.

Esta matriz patriarcal não é um acidente. É uma escolha civilizacional, institucionalizada por sistemas religiosos para consolidar a autoridade masculina. A religião, ao canonizar estas desigualdades como “vontade divina”, oferece o mais eficaz dos dispositivos ideológicos: uma opressão sacralizada.

8. Conclusão: nem silêncio, nem submissão

As religiões moldaram o mundo. Mas fizeram-no segundo a lente de uma antropologia patriarcal, que transforma mais de metade da humanidade em objeto de controlo e exclusão. O problema não é apenas teológico — é social, cultural, existencial. E, sobretudo, não é neutro.

É tempo de reconhecer que o tratamento dado às mulheres pelas grandes religiões constitui uma violação sistemática da dignidade humana. E que qualquer projeto espiritual sério precisa de romper com essa herança.

Mulheres de todas as fés, ou sem fé: levantem-se.
Homens livres, justos, conscientes: unam-se.
Académicos, jornalistas, ativistas: investiguem, revelem, denunciem.

A libertação espiritual das mulheres não virá das religiões — a não ser que sejam pressionadas, desafiadas e transformadas.

A luta por igualdade não é blasfémia. É justiça.
E justiça, para quem acredita, é também a mais sagrada das obrigações.

Não se trata de atacar a fé. Trata-se de libertá-la.
Não se trata de negar o sagrado. Trata-se de reconfigurá-lo.
A história não está terminada. Ainda há livros por escrever, textos por reinterpretar, comunidades por reconstruir.

5.6.25

A Resiliência das Conquistas Justas e Fundamentais: Um Olhar Académico sobre a Persistência dos Ideais Humanos Universais

 

A história da humanidade é, em grande parte, a história da luta por direitos, liberdades e um modo de vida mais justo. Contudo, esta jornada nem sempre é linear. Frequentemente, assistimos a períodos de avanço, seguidos por momentos de recuo ou "interregno" conservador, que parecem ameaçar a própria existência das conquistas obtidas. No entanto, uma análise aprofundada da história e da teoria política sugere que as conquistas verdadeiramente justas e fundamentais, aquelas que ressoam com aspirações humanas universais, possuem uma notável resiliência, emergindo ou persistindo apesar das tentativas de as suprimir.

O Caso da Revolução Francesa e a Irreversibilidade dos Ideais Liberais

Um dos exemplos mais paradigmáticos da resiliência das conquistas justas é o da Revolução Francesa (1789). Os seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade transformaram radicalmente a paisagem política e social da Europa. O fim do absolutismo monárquico, a abolição dos privilégios feudais e a proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão representaram um avanço sem precedentes na consagração dos direitos individuais e da soberania popular.

Contudo, o período pós-revolucionário foi marcado por instabilidade, radicalismo e, eventualmente, pela ascensão de Napoleão Bonaparte e, subsequentemente, pela Restauração Monárquica com o Congresso de Viena (1815). Este último representou uma tentativa concertada das potências conservadoras europeias de reverter o relógio histórico, restaurar os antigos regimes e suprimir as ideias liberais. Parecia que as conquistas revolucionárias tinham sido anuladas.

No entanto, como argumenta Eric Hobsbawm em A Era das Revoluções, os ideais da Revolução Francesa já tinham sido inoculados na consciência europeia. As reformas napoleónicas, paradoxalmente, ajudaram a disseminar elementos do Código Civil e princípios administrativos modernos por grande parte do continente. As sementes do liberalismo e do nacionalismo, lançadas em 1789, não puderam ser desfeitas. O século XIX foi palco de sucessivas ondas revolucionárias (1830, 1848), que, embora nem sempre vitoriosas de imediato, demonstram a persistência e a gradual afirmação desses ideais. A soberania popular e os direitos individuais, uma vez concebidos e experimentados, tornaram-se aspirações universais que não podiam ser permanentemente contidas.

A Persistência de Direitos Inalienáveis e a Dignidade Humana

Para além de revoluções específicas, a ideia de que certas conquistas são inalienáveis e persistem reside na própria noção de direitos humanos universais. Filósofos como John Locke, com a sua teoria dos direitos naturais à vida, liberdade e propriedade, argumentaram que estes direitos precedem o Estado e são inerentes à condição humana. Embora a sua implementação possa ser desafiada, a sua reivindicação subjaz a muitos movimentos de libertação e justiça social.

Mesmo sob regimes autoritários ou em períodos de forte supressão, a aspiração à liberdade de expressão, à justiça e à dignidade humana permanece latente. Amartya Sen, na sua obra sobre a justiça como equidade, sugere que a capacidade das pessoas de funcionar plenamente e de ter acesso a oportunidades é uma medida fundamental do desenvolvimento humano e da justiça. Quando estas capacidades são negadas, a semente da resistência e da busca por um futuro melhor é plantada. A busca por esses direitos pode ser temporariamente silenciada, mas a memória da sua ausência ou a aspiração à sua conquista continua a impulsionar a ação humana.

Conquistas Que Permanecem Apesar da Adversidade

Além do ressurgimento após um interregno, há conquistas que, embora constantemente ameaçadas, conseguem manter-se. A separação de poderes, teorizada por Montesquieu em O Espírito das Leis, é um exemplo. Embora governos autoritários possam tentar concentrar o poder, a ideia de pesos e contrapesos e a importância de instituições independentes (como o sistema judicial) persistem como um ideal normativo e uma salvaguarda contra a tirania. A sua aplicação prática pode ser falha, mas o conceito em si é difícil de erradicar da teoria política e das aspirações populares.

Outro exemplo é o próprio Estado de Direito. Mesmo em contextos de fragilidade democrática, a exigência de que todos estejam sujeitos à lei, incluindo os governantes, e que as decisões sejam tomadas com base em princípios claros e não no arbítrio, continua a ser uma aspiração fundamental. A luta contra a corrupção e o abuso de poder, presente em quase todas as sociedades, atesta a persistência deste ideal.

O Papel da Memória e da Educação

A resiliência das conquistas justas é também reforçada pela memória coletiva e pela educação. A transmissão de histórias de luta, de avanços e de retrocessos, mantém vivos os ideais e as aspirações. Hannah Arendt, ao discutir a condição humana e a importância da ação política, sublinha como a capacidade de "fazer novas coisas" e de iniciar processos é central para a liberdade humana. A memória das conquistas passadas serve de inspiração e de base para futuras ações.

Conclusão

Em suma, a história e a teoria política oferecem um forte argumento para a resiliência das conquistas justas e fundamentais que ressoam com aspirações humanas universais. Embora as sociedades possam experimentar "viragens conservadoras" e tentativas de supressão, os ideais de liberdade, igualdade, dignidade e justiça são difíceis de erradicar. Eles podem ser temporariamente abrandados ou distorcidos, mas a sua inerente atração para a condição humana garante que, mais cedo ou mais tarde, ou ressurgem com força renovada, ou persistem como um bastião contra a regressão. É uma mensagem de esperança, mas também um lembrete da necessidade contínua de vigilância e defesa dessas conquistas.

 

 

4.6.25

A Imagem da Mulher na Literatura do Século XIX

 

Introdução

O século XIX foi um período de profundas transformações sociais, políticas e culturais que influenciaram diretamente a forma como a mulher era representada na literatura. Neste contexto de mudanças, a figura feminina emergiu como um tema central nas obras literárias, refletindo tanto os valores tradicionais quanto as tensões e contradições de uma sociedade em transformação. A literatura deste período não apenas retratou a condição feminina, mas também contribuiu para a construção e perpetuação de determinados arquétipos e imagens da mulher que, em muitos casos, perduram até os dias atuais.

Este texto visa analisar como a mulher foi representada na literatura do século XIX, considerando diferentes tradições literárias, como a brasileira, francesa, inglesa e americana. Através da análise de obras e autores representativos, buscaremos compreender os principais arquétipos femininos construídos neste período, bem como o contexto histórico e social que influenciou estas representações.

O Contexto Histórico e Social do Século XIX

O século XIX foi marcado por importantes transformações sociais e culturais que afetaram diretamente a condição feminina. A Revolução Industrial, o surgimento da burguesia como classe dominante, o desenvolvimento do capitalismo e as ideias iluministas trouxeram novas perspectivas sobre o papel da mulher na sociedade, embora muitas vezes reforçando estruturas patriarcais já existentes.

Neste período, consolidou-se a divisão entre o espaço público, dominado pelos homens, e o espaço privado, destinado às mulheres. O ideal da "mulher do lar" ou "anjo do lar" ganhou força, especialmente entre a burguesia, estabelecendo que a função primordial da mulher era cuidar da casa, do marido e dos filhos. A educação feminina, quando existente, era voltada para preparar as mulheres para o casamento e a maternidade, com ênfase em habilidades domésticas e comportamentos considerados adequados à sua condição.

Paralelamente, o século XIX também viu surgir os primeiros movimentos feministas organizados, que lutavam pelo direito ao voto, à educação e ao trabalho. Estas contradições e tensões entre o ideal tradicional da mulher submissa e as novas aspirações femininas encontraram eco na literatura do período, que ora reforçava os estereótipos vigentes, ora os questionava.

A Mulher na Literatura Francesa do Século XIX

Na literatura francesa do século XIX, a figura feminina ocupou um papel central, sendo representada de formas diversas e muitas vezes contraditórias. Como aponta Kedrini Domingos dos Santos em seu artigo "A figura feminina no imaginário francês do século XIX", a mulher surge como "um ser ambíguo, uma esfinge inacessível que artistas, escritores, filósofos e cientistas buscaram decifrar" (SANTOS, p. 153).

Um dos arquétipos femininos mais marcantes na literatura francesa deste período é o da "femme fatale", a mulher fatal que seduz e destrói os homens com sua beleza e artifícios. Esta imagem está associada a uma visão misógina que relaciona a mulher aos sentidos, ao corpo, ao pecado e à morte. Segundo Santos, "essa mulher cruel vai atrair e seduzir os homens com seus artifícios, revelando-se fatal a eles" (SANTOS, p. 153).

Esta representação da mulher como ser perigoso e destruidor foi influenciada por teorias científicas da época, como as ideias de Charles Darwin sobre a evolução das espécies, que foram interpretadas de forma a justificar a suposta inferioridade natural da mulher. O historiador francês Jules Michelet, por exemplo, descrevia a mulher como "um ser bem diferente do homem, oposto em tudo: nos gestos, na maneira de pensar, de falar e agir" e como "uma pessoa doente" cujos "caprichos seriam o resultado de seus sofrimentos, devendo por isso ser supervisionada pelo homem" (SANTOS, p. 153).

Em obras como "Madame Bovary" de Gustave Flaubert, publicada em 1857, vemos a representação de uma mulher que busca escapar das limitações impostas pela sociedade através de relacionamentos extraconjugais e do consumo, apenas para encontrar a desilusão e, finalmente, a morte. Emma Bovary simboliza tanto a crítica aos valores burgueses quanto a punição da mulher que ousa transgredir as normas sociais.

Por outro lado, autores como Victor Hugo apresentaram personagens femininas mais complexas, que, embora muitas vezes vitimizadas pela sociedade, demonstram força moral e capacidade de sacrifício, como Fantine em "Os Miseráveis" (1862).

A Mulher na Literatura Inglesa do Século XIX

Na literatura inglesa do século XIX, encontramos uma rica diversidade de representações femininas, desde as heroínas submissas e virtuosas até personagens que desafiam as convenções sociais. Este período viu o surgimento de importantes escritoras mulheres, como Jane Austen, as irmãs Brontë e George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans), que trouxeram novas perspectivas sobre a condição feminina.

Jane Austen, em obras como "Orgulho e Preconceito" (1813), criou personagens femininas inteligentes e perspicazes que, embora limitadas pelas convenções sociais da época, demonstram agência e discernimento. Elizabeth Bennet, a protagonista do romance, destaca-se por sua inteligência, jovialidade e capacidade de questionar as normas sociais, representando um novo tipo de heroína que valoriza a independência intelectual.

As irmãs Brontë, por sua vez, exploraram temas mais sombrios e passionais. Em "O Morro dos Ventos Uivantes" (1847) de Emily Brontë, Catherine Earnshaw é uma personagem complexa e contraditória, dividida entre o amor selvagem por Heathcliff e as convenções sociais representadas por seu casamento com Edgar Linton. Já em "Jane Eyre" (1847) de Charlotte Brontë, a protagonista homônima é uma mulher simples e sem beleza extraordinária, mas dotada de forte senso moral e desejo de independência, que recusa submeter-se completamente à autoridade masculina.

George Eliot, em romances como "Middlemarch" (1871-72), apresentou personagens femininas complexas e multifacetadas, como Dorothea Brooke, uma jovem idealista cujas aspirações intelectuais são frustradas pelo casamento com um erudito pedante e egoísta. Através destas personagens, Eliot explorou as limitações impostas às mulheres pela sociedade vitoriana e seu impacto nas vidas e aspirações femininas.

É importante notar que, mesmo nas obras escritas por mulheres, as protagonistas frequentemente encontram a realização através do casamento, refletindo as limitadas opções disponíveis para as mulheres na sociedade vitoriana. No entanto, estas autoras frequentemente subvertiam as convenções do romance romântico, apresentando uma visão mais realista e crítica das relações matrimoniais e da condição feminina.

A Mulher na Literatura Brasileira do Século XIX

Na literatura brasileira do século XIX, a representação da mulher foi fortemente influenciada pelos valores patriarcais da sociedade colonial e imperial, bem como pelas correntes literárias europeias, como o Romantismo e o Realismo/Naturalismo.

José de Alencar, um dos principais romancistas brasileiros do período romântico, criou diferentes tipos femininos em suas obras. Em "Lucíola" (1862), analisado por Ana Carolina Eiras Coelho Soares em seu artigo "Prostituta angelical ou santa demoníaca: imagens da mulher na literatura do século XIX", o autor apresenta a história de Lúcia, uma cortesã que se apaixona e busca redenção através do amor verdadeiro. Como aponta Soares, a personagem encarna a dualidade entre "a máscara hipócrita do vício" e "o modesto recato da inocência" (SOARES, p. 72), representando o arquétipo da prostituta com coração puro, que pode ser redimida pelo amor.

Esta dualidade na representação feminina é característica da literatura romântica brasileira, que frequentemente dividiu as mulheres em dois tipos principais: as puras e virtuosas, destinadas ao casamento e à maternidade, e as sedutoras e perigosas, associadas à perdição moral. Esta divisão reflete a influência da moral cristã e dos valores patriarcais na sociedade brasileira do século XIX.

Com o advento do Realismo/Naturalismo no final do século, autores como Machado de Assis e Aluísio Azevedo trouxeram representações mais complexas e críticas da condição feminina. Em "Dom Casmurro" (1899) de Machado de Assis, Capitu é uma personagem enigmática e multifacetada, cuja suposta infidelidade é narrada através da perspectiva parcial e ciosa de Bentinho, levantando questões sobre a confiabilidade do narrador e os preconceitos contra a mulher. Já em "O Cortiço" (1890) de Aluísio Azevedo, personagens como Rita Baiana representam a sensualidade feminina associada à mestiçagem e à cultura popular brasileira, enquanto Pombinha encarna a trajetória da jovem pura que é corrompida pelo ambiente degradante.

A Mulher na Literatura Americana do Século XIX

Na literatura americana do século XIX, a representação da mulher também refletiu as tensões e contradições da sociedade da época, especialmente no que diz respeito aos papéis de gênero e às expectativas sociais.

Um exemplo significativo é o romance "The Awakening" (O Despertar) de Kate Chopin, publicado em 1899, que narra a história de Edna Pontellier, uma mulher que busca sua independência e realização pessoal para além dos papéis tradicionais de esposa e mãe. Como analisa Ana Carla Barros Sobreira em seu artigo "A imagem da mulher no século XIX: Edna Pontellier reforça ou subverte?", esta obra utiliza a literatura como "ferramenta para análises das subjetividades etnográficas a partir da leitura de símbolos culturais como formas de manutenção de poder e de dominação" (SOBREIRA, p. 99).

Chopin apresenta uma protagonista que desafia as convenções sociais ao buscar sua autonomia e satisfação pessoal, incluindo a expressão de sua sexualidade fora do casamento. O trágico destino de Edna, que acaba cometendo suicídio, pode ser interpretado tanto como uma punição pela transgressão das normas sociais quanto como um ato final de liberdade e autodeterminação.

Outras autoras americanas do período, como Louisa May Alcott em "Mulherzinhas" (1868), apresentaram visões mais convencionais da feminilidade, embora não isentas de complexidade. A personagem Jo March, por exemplo, é uma jovem independente e com aspirações literárias que, embora eventualmente se case, mantém sua individualidade e paixão pela escrita.

Nathaniel Hawthorne, em "A Letra Escarlate" (1850), explorou as consequências sociais do adultério feminino através da personagem Hester Prynne, que é publicamente humilhada e ostracizada pela comunidade puritana após ter um filho fora do casamento. Apesar da punição social, Hester mantém sua dignidade e, ao longo do romance, conquista um certo grau de independência e respeito através de seu trabalho e conduta.

Arquétipos Femininos na Literatura do Século XIX

Através da análise das diferentes tradições literárias do século XIX, podemos identificar alguns arquétipos femininos recorrentes que refletem as visões e expectativas sociais sobre a mulher neste período:

1.O Anjo do Lar: A mulher virtuosa, submissa e dedicada ao lar e à família, que encontra sua realização no casamento e na maternidade. Este arquétipo representa o ideal feminino vitoriano e pode ser encontrado em personagens como Amelia Sedley em "Vanity Fair" de William Makepeace Thackeray.

2.A Femme Fatale: A mulher sedutora e perigosa, que utiliza sua beleza e sexualidade para manipular e destruir os homens. Este arquétipo, comum na literatura francesa do período, reflete os temores masculinos em relação ao poder feminino e à sexualidade. Exemplos incluem personagens de obras de Émile Zola e Gustave Flaubert.

3.A Heroína Romântica: A jovem pura e inocente que enfrenta adversidades e, geralmente, encontra a felicidade no amor verdadeiro. Este arquétipo é comum nos romances românticos e pode ser encontrado em obras de Jane Austen e nas primeiras obras de José de Alencar.

4.A Mulher Caída: A mulher que transgrediu as normas sociais, especialmente no que diz respeito à sexualidade, e que é punida por isso. Este arquétipo reflete a dupla moral sexual da época e pode ser encontrado em personagens como Emma Bovary de Flaubert e Lúcia de José de Alencar.

5.A Mulher Rebelde: A mulher que desafia conscientemente as convenções sociais e busca sua independência e realização pessoal. Este arquétipo, menos comum mas significativo, pode ser encontrado em personagens como Edna Pontellier de Kate Chopin e, em certa medida, em Jane Eyre de Charlotte Brontë.

Estes arquétipos não são estanques e muitas personagens femininas do século XIX apresentam características de mais de um deles, refletindo a complexidade e as contradições da condição feminina neste período.

Conclusão

A análise da imagem da mulher na literatura do século XIX revela tanto a persistência de estereótipos e visões tradicionais quanto o surgimento de representações mais complexas e questionadoras. As diferentes tradições literárias, influenciadas por seus contextos históricos e culturais específicos, apresentaram visões diversas da feminilidade, refletindo as tensões e contradições de uma sociedade em transformação.

É importante notar que, mesmo nas representações mais convencionais, muitas obras literárias do período conseguiram captar a complexidade da experiência feminina e as limitações impostas às mulheres pela sociedade patriarcal. Além disso, o surgimento de escritoras mulheres trouxe novas perspectivas e vozes à literatura, contribuindo para uma representação mais nuançada e autêntica da condição feminina.

A literatura do século XIX, ao mesmo tempo em que frequentemente reforçou os papéis de gênero tradicionais, também proporcionou espaços para o questionamento e a subversão destes papéis, antecipando muitas das discussões sobre gênero e feminismo que ganhariam força no século XX. Neste sentido, o estudo da imagem da mulher na literatura oitocentista não apenas nos ajuda a compreender melhor o passado, mas também lança luz sobre questões que continuam relevantes na contemporaneidade.

Referências

SANTOS, Kedrini Domingos dos. A figura feminina no imaginário francês do século XIX. Lettres Françaises, p. 153.
SOBREIRA, Ana Carla Barros. A imagem da mulher no século XIX: Edna Pontellier reforça ou subverte? Itinerários, Araraquara, n. 54, p. 99-112, jan./jun. 2022.
SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Prostituta angelical ou santa demoníaca: imagens da mulher na literatura do século XIX. Revista PLURAIS – Virtual, v. 3, n. 1, p. 72, 2013.