Introdução
O século XIX foi um período de profundas transformações sociais, políticas e culturais que influenciaram diretamente a forma como a mulher era representada na literatura. Neste contexto de mudanças, a figura feminina emergiu como um tema central nas obras literárias, refletindo tanto os valores tradicionais quanto as tensões e contradições de uma sociedade em transformação. A literatura deste período não apenas retratou a condição feminina, mas também contribuiu para a construção e perpetuação de determinados arquétipos e imagens da mulher que, em muitos casos, perduram até os dias atuais.
Este texto visa analisar como a mulher foi representada na literatura do século XIX, considerando diferentes tradições literárias, como a brasileira, francesa, inglesa e americana. Através da análise de obras e autores representativos, buscaremos compreender os principais arquétipos femininos construídos neste período, bem como o contexto histórico e social que influenciou estas representações.
O Contexto Histórico e Social do Século XIX
O século XIX foi marcado por importantes transformações sociais e culturais que afetaram diretamente a condição feminina. A Revolução Industrial, o surgimento da burguesia como classe dominante, o desenvolvimento do capitalismo e as ideias iluministas trouxeram novas perspectivas sobre o papel da mulher na sociedade, embora muitas vezes reforçando estruturas patriarcais já existentes.
Neste período, consolidou-se a divisão entre o espaço público, dominado pelos homens, e o espaço privado, destinado às mulheres. O ideal da "mulher do lar" ou "anjo do lar" ganhou força, especialmente entre a burguesia, estabelecendo que a função primordial da mulher era cuidar da casa, do marido e dos filhos. A educação feminina, quando existente, era voltada para preparar as mulheres para o casamento e a maternidade, com ênfase em habilidades domésticas e comportamentos considerados adequados à sua condição.
Paralelamente, o século XIX também viu surgir os primeiros movimentos feministas organizados, que lutavam pelo direito ao voto, à educação e ao trabalho. Estas contradições e tensões entre o ideal tradicional da mulher submissa e as novas aspirações femininas encontraram eco na literatura do período, que ora reforçava os estereótipos vigentes, ora os questionava.
A Mulher na Literatura Francesa do Século XIX
Na literatura francesa do século XIX, a figura feminina ocupou um papel central, sendo representada de formas diversas e muitas vezes contraditórias. Como aponta Kedrini Domingos dos Santos em seu artigo "A figura feminina no imaginário francês do século XIX", a mulher surge como "um ser ambíguo, uma esfinge inacessível que artistas, escritores, filósofos e cientistas buscaram decifrar" (SANTOS, p. 153).
Um dos arquétipos femininos mais marcantes na literatura francesa deste período é o da "femme fatale", a mulher fatal que seduz e destrói os homens com sua beleza e artifícios. Esta imagem está associada a uma visão misógina que relaciona a mulher aos sentidos, ao corpo, ao pecado e à morte. Segundo Santos, "essa mulher cruel vai atrair e seduzir os homens com seus artifícios, revelando-se fatal a eles" (SANTOS, p. 153).
Esta representação da mulher como ser perigoso e destruidor foi influenciada por teorias científicas da época, como as ideias de Charles Darwin sobre a evolução das espécies, que foram interpretadas de forma a justificar a suposta inferioridade natural da mulher. O historiador francês Jules Michelet, por exemplo, descrevia a mulher como "um ser bem diferente do homem, oposto em tudo: nos gestos, na maneira de pensar, de falar e agir" e como "uma pessoa doente" cujos "caprichos seriam o resultado de seus sofrimentos, devendo por isso ser supervisionada pelo homem" (SANTOS, p. 153).
Em obras como "Madame Bovary" de Gustave Flaubert, publicada em 1857, vemos a representação de uma mulher que busca escapar das limitações impostas pela sociedade através de relacionamentos extraconjugais e do consumo, apenas para encontrar a desilusão e, finalmente, a morte. Emma Bovary simboliza tanto a crítica aos valores burgueses quanto a punição da mulher que ousa transgredir as normas sociais.
Por outro lado, autores como Victor Hugo apresentaram personagens femininas mais complexas, que, embora muitas vezes vitimizadas pela sociedade, demonstram força moral e capacidade de sacrifício, como Fantine em "Os Miseráveis" (1862).
A Mulher na Literatura Inglesa do Século XIX
Na literatura inglesa do século XIX, encontramos uma rica diversidade de representações femininas, desde as heroínas submissas e virtuosas até personagens que desafiam as convenções sociais. Este período viu o surgimento de importantes escritoras mulheres, como Jane Austen, as irmãs Brontë e George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans), que trouxeram novas perspectivas sobre a condição feminina.
Jane Austen, em obras como "Orgulho e Preconceito" (1813), criou personagens femininas inteligentes e perspicazes que, embora limitadas pelas convenções sociais da época, demonstram agência e discernimento. Elizabeth Bennet, a protagonista do romance, destaca-se por sua inteligência, jovialidade e capacidade de questionar as normas sociais, representando um novo tipo de heroína que valoriza a independência intelectual.
As irmãs Brontë, por sua vez, exploraram temas mais sombrios e passionais. Em "O Morro dos Ventos Uivantes" (1847) de Emily Brontë, Catherine Earnshaw é uma personagem complexa e contraditória, dividida entre o amor selvagem por Heathcliff e as convenções sociais representadas por seu casamento com Edgar Linton. Já em "Jane Eyre" (1847) de Charlotte Brontë, a protagonista homônima é uma mulher simples e sem beleza extraordinária, mas dotada de forte senso moral e desejo de independência, que recusa submeter-se completamente à autoridade masculina.
George Eliot, em romances como "Middlemarch" (1871-72), apresentou personagens femininas complexas e multifacetadas, como Dorothea Brooke, uma jovem idealista cujas aspirações intelectuais são frustradas pelo casamento com um erudito pedante e egoísta. Através destas personagens, Eliot explorou as limitações impostas às mulheres pela sociedade vitoriana e seu impacto nas vidas e aspirações femininas.
É importante notar que, mesmo nas obras escritas por mulheres, as protagonistas frequentemente encontram a realização através do casamento, refletindo as limitadas opções disponíveis para as mulheres na sociedade vitoriana. No entanto, estas autoras frequentemente subvertiam as convenções do romance romântico, apresentando uma visão mais realista e crítica das relações matrimoniais e da condição feminina.
A Mulher na Literatura Brasileira do Século XIX
Na literatura brasileira do século XIX, a representação da mulher foi fortemente influenciada pelos valores patriarcais da sociedade colonial e imperial, bem como pelas correntes literárias europeias, como o Romantismo e o Realismo/Naturalismo.
José de Alencar, um dos principais romancistas brasileiros do período romântico, criou diferentes tipos femininos em suas obras. Em "Lucíola" (1862), analisado por Ana Carolina Eiras Coelho Soares em seu artigo "Prostituta angelical ou santa demoníaca: imagens da mulher na literatura do século XIX", o autor apresenta a história de Lúcia, uma cortesã que se apaixona e busca redenção através do amor verdadeiro. Como aponta Soares, a personagem encarna a dualidade entre "a máscara hipócrita do vício" e "o modesto recato da inocência" (SOARES, p. 72), representando o arquétipo da prostituta com coração puro, que pode ser redimida pelo amor.
Esta dualidade na representação feminina é característica da literatura romântica brasileira, que frequentemente dividiu as mulheres em dois tipos principais: as puras e virtuosas, destinadas ao casamento e à maternidade, e as sedutoras e perigosas, associadas à perdição moral. Esta divisão reflete a influência da moral cristã e dos valores patriarcais na sociedade brasileira do século XIX.
Com o advento do Realismo/Naturalismo no final do século, autores como Machado de Assis e Aluísio Azevedo trouxeram representações mais complexas e críticas da condição feminina. Em "Dom Casmurro" (1899) de Machado de Assis, Capitu é uma personagem enigmática e multifacetada, cuja suposta infidelidade é narrada através da perspectiva parcial e ciosa de Bentinho, levantando questões sobre a confiabilidade do narrador e os preconceitos contra a mulher. Já em "O Cortiço" (1890) de Aluísio Azevedo, personagens como Rita Baiana representam a sensualidade feminina associada à mestiçagem e à cultura popular brasileira, enquanto Pombinha encarna a trajetória da jovem pura que é corrompida pelo ambiente degradante.
A Mulher na Literatura Americana do Século XIX
Na literatura americana do século XIX, a representação da mulher também refletiu as tensões e contradições da sociedade da época, especialmente no que diz respeito aos papéis de gênero e às expectativas sociais.
Um exemplo significativo é o romance "The Awakening" (O Despertar) de Kate Chopin, publicado em 1899, que narra a história de Edna Pontellier, uma mulher que busca sua independência e realização pessoal para além dos papéis tradicionais de esposa e mãe. Como analisa Ana Carla Barros Sobreira em seu artigo "A imagem da mulher no século XIX: Edna Pontellier reforça ou subverte?", esta obra utiliza a literatura como "ferramenta para análises das subjetividades etnográficas a partir da leitura de símbolos culturais como formas de manutenção de poder e de dominação" (SOBREIRA, p. 99).
Chopin apresenta uma protagonista que desafia as convenções sociais ao buscar sua autonomia e satisfação pessoal, incluindo a expressão de sua sexualidade fora do casamento. O trágico destino de Edna, que acaba cometendo suicídio, pode ser interpretado tanto como uma punição pela transgressão das normas sociais quanto como um ato final de liberdade e autodeterminação.
Outras autoras americanas do período, como Louisa May Alcott em "Mulherzinhas" (1868), apresentaram visões mais convencionais da feminilidade, embora não isentas de complexidade. A personagem Jo March, por exemplo, é uma jovem independente e com aspirações literárias que, embora eventualmente se case, mantém sua individualidade e paixão pela escrita.
Nathaniel Hawthorne, em "A Letra Escarlate" (1850), explorou as consequências sociais do adultério feminino através da personagem Hester Prynne, que é publicamente humilhada e ostracizada pela comunidade puritana após ter um filho fora do casamento. Apesar da punição social, Hester mantém sua dignidade e, ao longo do romance, conquista um certo grau de independência e respeito através de seu trabalho e conduta.
Arquétipos Femininos na Literatura do Século XIX
Através da análise das diferentes tradições literárias do século XIX, podemos identificar alguns arquétipos femininos recorrentes que refletem as visões e expectativas sociais sobre a mulher neste período:
1.O Anjo do Lar: A mulher virtuosa, submissa e dedicada ao lar e à família, que encontra sua realização no casamento e na maternidade. Este arquétipo representa o ideal feminino vitoriano e pode ser encontrado em personagens como Amelia Sedley em "Vanity Fair" de William Makepeace Thackeray.
2.A Femme Fatale: A mulher sedutora e perigosa, que utiliza sua beleza e sexualidade para manipular e destruir os homens. Este arquétipo, comum na literatura francesa do período, reflete os temores masculinos em relação ao poder feminino e à sexualidade. Exemplos incluem personagens de obras de Émile Zola e Gustave Flaubert.
3.A Heroína Romântica: A jovem pura e inocente que enfrenta adversidades e, geralmente, encontra a felicidade no amor verdadeiro. Este arquétipo é comum nos romances românticos e pode ser encontrado em obras de Jane Austen e nas primeiras obras de José de Alencar.
4.A Mulher Caída: A mulher que transgrediu as normas sociais, especialmente no que diz respeito à sexualidade, e que é punida por isso. Este arquétipo reflete a dupla moral sexual da época e pode ser encontrado em personagens como Emma Bovary de Flaubert e Lúcia de José de Alencar.
5.A Mulher Rebelde: A mulher que desafia conscientemente as convenções sociais e busca sua independência e realização pessoal. Este arquétipo, menos comum mas significativo, pode ser encontrado em personagens como Edna Pontellier de Kate Chopin e, em certa medida, em Jane Eyre de Charlotte Brontë.
Estes arquétipos não são estanques e muitas personagens femininas do século XIX apresentam características de mais de um deles, refletindo a complexidade e as contradições da condição feminina neste período.
Conclusão
A análise da imagem da mulher na literatura do século XIX revela tanto a persistência de estereótipos e visões tradicionais quanto o surgimento de representações mais complexas e questionadoras. As diferentes tradições literárias, influenciadas por seus contextos históricos e culturais específicos, apresentaram visões diversas da feminilidade, refletindo as tensões e contradições de uma sociedade em transformação.
É importante notar que, mesmo nas representações mais convencionais, muitas obras literárias do período conseguiram captar a complexidade da experiência feminina e as limitações impostas às mulheres pela sociedade patriarcal. Além disso, o surgimento de escritoras mulheres trouxe novas perspectivas e vozes à literatura, contribuindo para uma representação mais nuançada e autêntica da condição feminina.
A literatura do século XIX, ao mesmo tempo em que frequentemente reforçou os papéis de gênero tradicionais, também proporcionou espaços para o questionamento e a subversão destes papéis, antecipando muitas das discussões sobre gênero e feminismo que ganhariam força no século XX. Neste sentido, o estudo da imagem da mulher na literatura oitocentista não apenas nos ajuda a compreender melhor o passado, mas também lança luz sobre questões que continuam relevantes na contemporaneidade.
Referências
SANTOS, Kedrini Domingos dos. A figura feminina no imaginário francês do século XIX. Lettres Françaises, p. 153.
SOBREIRA, Ana Carla Barros. A imagem da mulher no século XIX: Edna Pontellier reforça ou subverte? Itinerários, Araraquara, n. 54, p. 99-112, jan./jun. 2022.
SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho. Prostituta angelical ou santa demoníaca: imagens da mulher na literatura do século XIX. Revista PLURAIS – Virtual, v. 3, n. 1, p. 72, 2013.
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