Resumo
Este artigo, editado a partir da pesquisa de Hamda Ouakel em "La Femme Bête Noire Des Religions" (https://kapitalis.com/tunisie/2016/08/23/la-femme-bete-noire-des-religions-16/), propõe uma análise crítica do lugar da mulher nas cinco principais religiões mundiais — Judaísmo, Cristianismo, Islão, Hinduísmo e Budismo — com base nas suas escrituras fundacionais e tradições teológicas. Apesar da diversidade cultural e temporal, observa-se um padrão estruturante: a mulher é sistematicamente posicionada como ser inferior, impuro, passível de controlo e alvo de exclusão social, espiritual e política. A investigação parte de uma abordagem comparativa e de uma hermenêutica crítica, apoiando-se tanto na exegese textual como em enquadramentos sociológicos. Conclui-se que a subalternização feminina não é um desvio das religiões, mas um elemento estrutural da sua génese e desenvolvimento. Por fim, propõe-se uma reflexão sobre os caminhos possíveis de superação deste paradigma.
1. Introdução: Religião, género e poder
A religião tem desempenhado um papel determinante na configuração dos sistemas sociais e das estruturas de poder. Não apenas define cosmovisões e comportamentos, como também estabelece normas de género, sexualidade, hierarquia e autoridade. Neste contexto, a posição da mulher nas religiões revela-se como um espelho da sua concepção antropológica: é a mulher sujeito moral, espiritual e político, ou é ela um apêndice do homem, subjugada à vontade divina mediada por figuras masculinas?
Este artigo investiga essa questão, recorrendo à análise de textos sagrados, jurisprudência religiosa e tradições doutrinais das cinco principais religiões históricas. A abordagem visa expor não apenas os traços comuns de marginalização feminina, mas também a lógica interna que sustenta essa marginalização: a construção da mulher como outro negativo — tentador, impuro, irracional ou submisso.
2. Judaísmo: a mulher como extensão do patriarca
A literatura judaica, nomeadamente a Torá e o Talmude, consagra uma estrutura legal e moral profundamente patriarcal. A mulher é, legalmente, propriedade do pai, do marido ou do irmão. A oração matinal masculina que agradece a Deus por "não ter nascido mulher" é sintomática do lugar feminino na ordem cosmoteológica. A mulher é excluída do sacerdócio, da herança em igualdade, da participação ativa no culto e, em muitos contextos, até da contagem para o minyan (quórum sagrado).
A pureza ritual também reforça esta exclusão: a mulher menstruada é considerada impura e deve ser isolada. A prática do lévirato, que transfere a viúva para o cunhado como parte da herança, inscreve o corpo feminino no universo económico, não no existencial.
3. Cristianismo: silêncio e submissão como virtudes
Embora o Novo Testamento introduza um discurso de abertura à inclusão moral das mulheres (Maria, Madalena, etc.), as epístolas paulinas e a patrística consolidam uma teologia do silêncio e da submissão. Textos como “a mulher cale-se nas assembleias” (1 Cor 14:34) ou “o homem é a cabeça da mulher” (Ef 5:23) consolidam a hierarquia de género como parte da ordem divina.
O magistério cristão impediu durante séculos o acesso das mulheres à leitura das Escrituras, ao ensino teológico e aos sacramentos da ordem. A virgindade e o martírio feminino tornaram-se formas simbólicas de obediência, esvaziando a agência feminina em nome de uma castidade espiritual.
4. Islão: tutela masculina e disciplina corporal
O Islão retoma e acentua a tutela masculina sobre a mulher. O versículo 4:34 do Corão estabelece que “os homens são os protetores das mulheres” e permite, em caso de desobediência, a separação no leito e a agressão física. A mulher é excluída da herança em igualdade (uma parte para a filha, duas para o filho), do testemunho jurídico completo (meio testemunho) e da liderança religiosa.
O uso obrigatório do véu, justificado por argumentos de “modéstia” ou “proteção”, reforça a ideia de que o corpo da mulher é uma ameaça moral — para o homem e para a sociedade. A sexualidade feminina é regulada em função da honra masculina, e o adultério pode ser punido com flagelação ou morte, em códigos inspirados nas primeiras interpretações corânicas.
5. Hinduísmo: castas, casamento infantil e invisibilidade
As Leis de Manu, texto basilar da normatividade hindu, descrevem a mulher como ser essencialmente dependente. Desde o nascimento até à morte, a mulher deve obedecer ao pai, ao marido ou ao filho. O casamento é um acordo entre famílias, sem espaço para o consentimento ou desejo feminino. A escolha amorosa é considerada impura. Casamentos infantis, poligamia legalizada e a exclusão da herança são normativos.
A sati — imolação ritual da viúva — foi uma prática social sustentada por esta ideologia: uma mulher sem marido é inútil, fonte de desonra. A mulher é uma oferenda, uma dádiva, uma moeda entre clãs — mas nunca sujeito.
6. Budismo: rejeição espiritual do feminino
Apesar do discurso mais espiritualizado do budismo, o corpo feminino é descrito como “impuro”, “cheio de excrementos”, “um vaso de lixo”, segundo textos fundadores como A Preciosa Grinalda. A mulher é considerada fonte de distração, obstáculo à iluminação e símbolo de ilusão. Mesmo Buda, em vários sutras, adverte os seus discípulos para se manterem afastados das mulheres, retratadas como enganosas, mentirosas e perversas.
A oração mais comum entre mulheres budistas é a de renascer como homem — sinal da sua exclusão espiritual. Mesmo nas tradições mais recentes, o acesso feminino ao ensino monástico ou à autoridade doutrinária continua limitado.
7. Padrões comuns e implicações
Apesar das diferenças históricas, culturais e linguísticas, há um padrão transversal nestas religiões:
· A mulher é representada como fonte de desordem moral ou cósmica;
· É frequentemente excluída da transmissão do saber religioso;
· É desvalorizada nas estruturas de herança e autoridade;
· O seu corpo é controlado, escondido ou punido;
· A sua sexualidade é regulada em função da honra e da linhagem masculina.
Esta matriz patriarcal não é um acidente. É uma escolha civilizacional, institucionalizada por sistemas religiosos para consolidar a autoridade masculina. A religião, ao canonizar estas desigualdades como “vontade divina”, oferece o mais eficaz dos dispositivos ideológicos: uma opressão sacralizada.
8. Conclusão: nem silêncio, nem submissão
As religiões moldaram o mundo. Mas fizeram-no segundo a lente de uma antropologia patriarcal, que transforma mais de metade da humanidade em objeto de controlo e exclusão. O problema não é apenas teológico — é social, cultural, existencial. E, sobretudo, não é neutro.
É tempo de reconhecer que o tratamento dado às mulheres pelas grandes religiões constitui uma violação sistemática da dignidade humana. E que qualquer projeto espiritual sério precisa de romper com essa herança.
Mulheres de todas as fés, ou sem fé: levantem-se.
Homens livres, justos, conscientes: unam-se.
Académicos, jornalistas, ativistas: investiguem, revelem, denunciem.
A libertação espiritual das mulheres não virá das religiões — a não ser que sejam pressionadas, desafiadas e transformadas.
A luta por igualdade não é blasfémia. É justiça.
E justiça, para quem acredita, é também a mais sagrada das obrigações.
Não se trata de atacar a fé. Trata-se de libertá-la.
Não se trata de negar o sagrado. Trata-se de reconfigurá-lo.
A história não está terminada. Ainda há livros por escrever, textos por
reinterpretar, comunidades por reconstruir.
Sem comentários:
Enviar um comentário