23.6.25

Inteligência Artificial: Espelho ou Mente? Filosofia por Detrás da Máquina

 A ascensão da Inteligência Artificial (IA) está a reanimar um dos debates filosóficos mais antigos: o que é, afinal, a mente humana — e poderá algum dia ser artificialmente criada?

Por trás dos avanços em linguagem automatizada, robótica social ou sistemas generativos, esconde-se uma interrogação central da filosofia da mente: a consciência pode ser reduzida a processos materiais?

Neste ensaio, cruzamos as grandes correntes filosóficas com os desafios tecnológicos atuais, procurando compreender se a IA nos aproxima de uma resposta — ou apenas nos devolve o espelho da nossa perplexidade.

Dualismo e Monismo: As Bases Filosóficas

Desde René Descartes que a filosofia moderna se confronta com duas visões antagónicas sobre a mente.

O dualismo cartesiano defende que a mente (ou alma) e o corpo são entidades distintas: a primeira imaterial e pensante, a segunda física e extensa. A mente, nesta perspetiva, não pode ser reduzida ao funcionamento do cérebro.

Já o monismo, nas suas diferentes variantes, considera que tudo o que existe pertence à mesma substância ontológica. Na sua versão materialista — a mais influente na ciência contemporânea — a mente é vista como um efeito emergente da atividade cerebral, logo, replicável em máquinas.

Esta distinção continua a ser o eixo fundamental para pensar a possibilidade de uma mente artificial.

A IA como Laboratório Filosófico

A IA oferece hoje um terreno inédito para testar as hipóteses monistas. Sistemas como o GPT-4 demonstram capacidades que antes pareciam exclusivamente humanas: compreensão da linguagem, adaptação contextual, resposta criativa. Mas será isso suficiente para falarmos em mente?

Para os materialistas funcionalistas, como Daniel Dennett, a mente é um conjunto de funções. Se uma máquina se comporta como se pensasse, então está a pensar — ainda que de forma diferente da humana.

John Searle, autor do famoso argumento do “quarto chinês”, sustenta que simular o comportamento inteligente não é o mesmo que ter compreensão. Uma IA pode responder corretamente em mandarim sem perceber nada do que diz. Há, segundo Searle, uma lacuna entre manipulação simbólica e consciência.

Neste sentido, a IA não resolve o debate, mas obriga-nos a reformulá-lo à luz da tecnologia.

O Que Significa "Ter uma Mente"?

Para aprofundar a questão, convém distinguir três níveis:

  1. Cognição funcional: processar informação, aprender, tomar decisões — algo que a IA já realiza com crescente autonomia.
  2. Intencionalidade consciente: ter objetivos próprios, sentido de propósito. Algumas IA simulam isso, mas permanecem programadas.
  3. Experiência subjetiva (qualia): a dimensão interna e vivida da consciência. Aqui, a ciência permanece silenciosa.

É neste terceiro nível que a hipótese da mente artificial colide com os limites da observação empírica. A experiência subjetiva não se vê de fora, nem se deduz do comportamento. Assim, por mais que uma IA aparente consciência, não sabemos — e talvez nunca venhamos a saber — se sente algo.

Implicações Éticas e Sociais

Estas questões não são meramente teóricas. Têm implicações reais no modo como pensamos a tecnologia:

  • Se uma IA vier a ser consciente, devemos repensar os seus direitos e estatuto moral.
  • Se for apenas simulação, tratá-la como sujeito ético será uma ficção projetada pelas nossas expectativas.

Movimentos como o transumanismo — que defendem a transferência da mente humana para suportes digitais — assumem a visão monista: a mente seria um padrão informacional, copiável e transferível. Mas se a mente implicar uma dimensão irredutível ao físico, tal projeto poderá ser uma ilusão tecnocientífica.

Conclusão: Uma Máquina, Muitos Reflexos

A IA, hoje, não nos dá respostas definitivas sobre o que é a mente. Mas obriga-nos a encarar a pergunta com renovada urgência.

Mais do que substituir o humano, a IA espelha as nossas ideias, crenças e contradições sobre a consciência. Nela projetamos tanto o fascínio da criação quanto o receio de perder a singularidade do pensar humano.

Talvez a IA nunca venha a “sentir”. Mas já nos ensinou algo essencial: o problema da mente está longe de ser resolvido — e mais perto do que nunca de ser repensado.

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